Monday, April 28, 2014

...

compreender que a eternidade de deus está justamente em ser ele ideia, como quis para o amor o poeta, independente do quanto durem ela e quem a concebe, até então levaria vida blasfema, procurando inutilmente apontar seu lugar no mundo. E embora circunstancial como qualquer outra, que para existir depende de ser pensada (ou de haver quem a pense), a de deus se impõe a quem quer que tenha de valer-se do conceito de causa para orientar-se no espaço e no tempo. Nisto possivelmente consiste o poder que atribuímos ao seu presumido objeto e expressa a incapacidade de o não concebermos.

Já quanto ao modo de se impor deus como causa à frente de qualquer outra que sejamos capazes de imaginar, não foi possível chamá-lo senão de perfeito. Pois segundo o concebemos, ora, ele sequer pode ser percebido, salvo enquanto ideia, isto pelo simples motivo de que o percebê-lo no mundo acarreta, não importa com o que o identifiquemos, a inferência de ainda haver para isso uma causa, o verdadeiro deus (e por razão não diferente há tantos deuses distintos, não raro supostos serem o mesmo, mas só enquanto não cotejados por quem neles crê). Isto se compreende por sermos obrigados a admitir que o mundo, seja como for em si mesmo, é para nós primeira e unicamente ideia e duvidar disso equivale a afirmar que é possível conhecer sem o concurso delas, ideias, bem como que, sendo a única coisa de que efetivamente dispomos, a ideia permite a nós inferir seja o que for a respeito do mundo fora de outras ideias (pois mesmo as sensações, em sua supostamente inquestionavel natureza, são já ideias quando se fazem conhecer - se de fato foram antes coisa diferente - e são, se não de todo, ao menos o grosso do material de que ideias são formadas).

Então, em outros termos, 'encontrar deus' seja talvez blasfêmia maior do que qualquer outra pensável ou derivável dos vários atributos que lhe conferimos, apressados e ignorantes do porque de cada qual. Porque o deus encontrado, percebido, será já ideia, como se mostrou, será já concepção, e sempre haverá outra, segundo mesmo a ideia de deus, que seremos capazes de impor como causa de não importa o que conseguirmos conceber. Deus é, então, ideia do que não pode nem precisa ser encontrado, é também prova de que em face do mundo a ideia pode prevalecer e lhe ser independente, prova de que se para serem conhecidas as coisas - sejam quais forem - necessitam das ideias, o reverso disto não é necessário, pois mesmo tendo presumida no mundo sua origem universal, a ideia pode daí libertar-se, gerando inclusive o que no mundo não pode - nem deve - caber, um de cujos exemplos é deus.

Por outro lado a ideia de deus traz consigo a mostra de sermos igualmente incapazes de compreender com alguma clareza conceitos como os de 'nada' e 'fim': mesmo que se pense, por exemplo, num término para o mundo, esse nada restante ainda assim seria algo, o que resultou do encadeamento de causas desde a primeira, enfim, seria consequência de deus. Deus não estaria fora do tempo, então, mas nesse tempo para aquém e para além de tudo mais, digo, para lá de tudo quanto dura somente o bastante para transformar-se ou transmutar-se em outra coisa, em outras coisas.

Em vista desses aspectos não haverá ateísmo ou agnosticismo possivel, sustentável. Porque a ideia de deus vem pronta, quanto aos atributos eternidade, perfeição e poder, às mentes, quaisquer, que têm por guia o conceito de causa. Seja possível talvez ignorá-la ou não lhe agigantar a importância, nada obstante o quão insistentemente nos acorre, como o teriam feito ou ainda fazem groenlandeses (inuites) e pirahãs, segundo informam Feuerbach e o linguista Everett. Não há, entretanto, como resisti-la - negá-la - sem resistir a - ou negar - o conceito de causa que, além de ainda pouco conhecido, não encontra substituto de mesma competência depois de detratado por alguma filosofia e talvez por isso, por isso só, o preservemos. Prova melhor não há de ela estar, como dizia Descates, afixada em nossos pensamento (mesmo sendo incerto que seja inata) do que substitur o israelita pelo deus matemática, como o tem feito alguma ciência, essa partidária de aliar paradoxos como o do 'multiverso' a um neoplatonismo que volta a localizar o número em outro mundo (seja este o que for).

Daí, então, para a inferência de outros atributos há saltos, mas talvez não os haja para se alcançar um em especial, o de justeza: deus, assim, tem de ser justo. Pois justo será sempre o derivar algo de outra coisa (já que foi precisamente aquilo, não outra coisa qualquer, o que foi derivado) e negar esta assunção equivale a admitir que não há justeza no dar a maçã uma macieira ou mesmo no dar uma aberração qualquer um organismo em cuja genética interferiu-se. E a não ser que estoicamente vejamos essa justeza como boa, digo, a desepeito de quando em particular ela nos for ou parecer infensa, nada mais parece aproximar os conceitos de justo e de bom, pelo que a ideia de deus deve passar muito bem sem o atributo da perpétua bondade, pois, repito, é preciso ser-se estóico perfeito, como o sonhado por Epicteto, para se chegar a tanto.

E assim como não haverá lugar para ateísmo ou agnosticismo do viés do que pode conter a ideia de deus, tampouco existirá espaço para religiões, pois se a etimologia está correta, desnecessário é ligar seja o que for, visto a ideia de deus estar imiscuída no modo de todos compreendermos as coisas, pelo que, também, estamos desde sempre todos unidos por ela, nela. Religar, então, o quê? Quanto a adorar, ora, como o fazer sem incorrer em sério desvio da maneira como concebemos a ideia de deus? Se de existência certa, pois há de haver uma causa primeira (se de causas entendemos serem as coisas tecidas), deus tem-se mantido copiosamente a distância segura de nossos sentidos comezinhos (embora não do sentido principal, o pensamento), bem como à distância do quanto somos capazes de conceber como causa inicial (como se mostrou); em vista de tal, se algo parece ele querer, então, será apenas que o intuamos e lhe reconheçamos o papel no universo. E é inclusive possível que não tenha deus o poder de mostrar-se a nós para além da ideia que temos dele, o que o não diminui ou desmerece, haja ver as ideias, sendo tudo quanto possuímos, não nos indicarem elas próprias como 'tocam' elas no mundo (embora nelas 'toquemos') o qual, como deus, sendo embora de existência certa (pois deve haver algo provendo-me de certas ideias que antes eu não tinha), tem de permanecer apenas presumido.

Sunday, April 20, 2014

...

entendo ser difícil ou raro viver sem a ideia de deus. Observe-se, entretanto: escrevi 'ideia'. Porque até que se mostre objetivamente onde ele está, ou onde estão todos e cada um chamados de deus por cada religião ou indivíduo, deus será sempre uma ideia. E este é o cerne do que se chama 'moderno ateísmo', para o qual ateu seria não mais quem nega existir deus, mas quem entende que o ônus da prova da existência  - para lá de somente ideia - de algum deus é de quem a afirma. Mas tal é o perfil clássico do agnóstico, a saber, esse que tem por insuficientes ou inconclusivos todos os argumentos metafísicos - por assim dizer - limítrofes, argumentos como os para a existência de deus, de um sentido para a vida etc.

Haverá quem nisto enxergue a morte do ateísmo, e não sem razão. Por outro lado, se de morte é o caso, é de há muito anunciada. Diga-se que a de ateu é convicção natimorta, justo pelo que somente o chamado ateísmo moderno - que nada mais tem sido do que o velho agnosticismo - se deu recentemente conta: de ser impossível negar em absoluto a existência de algo, mesmo em se tratando de coisas como o unicórnio, pois vá lá que por algum capricho do universo unicórnios venham a ser observados... (Além do mais, insisto, unicórnios de fato existem enquanto objetos pensados e negar tal existência acarreta negar existirem os pensamentos, convenhamos.)

Entretanto é claro, em vista da universal propensão nossa para desdenhar da espessura integral dos conceitos, deverão subsistir maneiras ligeiras de usar o termo 'ateu', ao menos designando aquele que vive muito bem sem recurso à idéia de um deus, aliás e em verdade o mesmo que vêm sustentando agnósticos desde que Huxley criou o termo e, sem se autodesignarem ateus, os nativos groenlandeses, segundo Feuerbach, e a tribo dos pirahã na Amazônia, como relata o linguista Everett. Enfim, contemplamos, acredito, o nascimento de, no mínimo, uma nova sinonímia, se não se quer sumariamente decretar o ateísmo como morto.

Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported License